A perigosa Reentrada na Atmosfera
da Capoeira
Se afastando da Capoeira, cuidado
ao voltar...!!
Tenho observado há tempos um
fenômeno que é muito conhecido da maioria dos capoeiristas, mormente os que
estejam em franca atividade, produzindo, treinando, dando aulas, vivendo-a,
enfim. Esse fenômeno é muito comum e se caracteriza pelo afastamento, em maior
ou menor tempo, do movimento que a capoeira produz, de natureza social,
desportiva, política e, principalmente, competitiva, onde todos conhecem
todos, se unem entre si, os próximos e se competem, os mais distantes.
A capoeira é uma entidade viva. Tem
uma energia densa e complexa. Só os iniciados nela a compreendem o suficiente
para amá-la ou deixá-la, dependendo do momento histórico em que se aproximem,
se tornem capoeiristas, ou façam parte daqueles que dominam um determinado
momento da sua História.
A Capoeira é muito forte! Forte em
seus elementos de união, como também naquele tipo de resistência que permite
aos seus praticantes, participantes, mestres e adeptos em geral, se tornarem
verdadeiros guerreiros do bom combate (lutam contra a covardia, a tirania, a
ignorância, etc.), como também existem os que combatem por si mesmos,
formando grupos altamente unidos em torno de uma ideologia estabelecida pelo
seu líder, que também é muito comum em nossa Arte.
A capoeira também tem um respeito
muito grande pelos seus ancestrais. Sem dúvida tem!
Esse respeito é tão grande, que por
causa disso alguns adeptos querem se tornar velho mestre muito
cedo, daí a razão de pessoalmente eu ter cunhado uma patologia social muito
comum na sua prática, que denominei: Síndrome da Velhice
Precoce. Ou seja, pessoas que, embora razoavelmente novas, já querem
se comportar como se fossem um mestre antigo, naturalmente
para ter direito ao tratamento como tal e com isso ter regalias, como ter um
tratamento diferenciado, receber homenagens, ser respeitado e,
principalmente, ser poupado da obrigação de estar em forma, treinar,
praticar, ensinar, jogar inclusive, etc.
Por tudo isso é que o
verdadeiro Velho-Mestre, tem muito respeito dentro da capoeira.
A combinação dessa vontade de ser
importante e a momentânea ou demorada necessidade de se afastar da capoeira,
no entanto, produz um perigoso efeito de uma desconfiança e muita restrição
aos que incorrem ou simplesmente se afastam por problemas que eles não podem
controlar. Os capoeiristas olham com muita indignação aqueles que se afastam.
Mormente os que voltam. Pior ainda, os que voltam e reivindicam seu direito
às regalias dos velhos mestres.
Nesse momento é que se observa
melhor esse fenômeno: a reentrada na atmosfera da Capoeira!
Imagem da reentrada na atmosfera da
Terra
Já assisti muitas vezes a
manifestação da indignação dos capoeiristas com relação a isso. É natural que
quem está na labuta constante e exaustiva da prática de uma Arte-esporte, as
vezes lutas inglórias, desgastantes viagens para participar de eventos, trabalhos
dando aulas e promovendo eventos, enfrentando sérias restrições de meios, o
que é outra faceta da luta dos capoeiristas, superando barreiras e inúmeros
tipos diferentes de restrições e, de repente, surge alguém que para eles
"abandonou o barco", quase sempre num momento difícil, mesmo porque
todos os momentos da História da Capoeira são difíceis para quem está naquela
situação, sustentando-a, fazendo-a se tornar hoje, um dos maiores movimentos
da cultura popular da História de nosso país, já extensiva ao mundo inteiro,
que combina em sua prática a educação, a prática desportiva de grande valor,
a socialização, a Arte musical e o aprendizado prático de instrumentos
rudimentares, mas que dão àqueles que nada sabiam de música, que não tiveram
oportunidade de nenhum aprendizado musical, se tornarem muitas vezes
excelentes cantores, ótimos percussionistas - alguns se profissionalizam e
são respeitados nisso... enfim, a capoeira é múltipla e no caminho de quem a
faça estão inúmeros desafios de superação pessoal e coletiva.
Esquecendo as contribuições e se
tornando hostil aos reentrantes
Esse fenômeno, também, por vezes,
guarda um lado que o torna delicado e até perigoso, pois quem, na sua vontade
de retornar para o epicentro da capoeira, pula algumas
gerações entre sua saída da cena e seu retorno, pois a capoeira é viva e de
revezamento constante entre os seus praticantes. Sempre tem aquela pessoa que
está no seu comando a cada momento, quem está representando sua energia, sua
força, sua pulsante atração para quem a vê e, mais ainda, para quem teve que
se afastar ou se afastou por vontade própria!
Nesse contexto, encontramos um
outro fenômeno social, esse se trata de uma característica fundante da nossa
sociedade como um todo, que é a questão da falta de memória ou fácil
esquecimento da própria História. Nada sabemos, de fato, de nossa História.
Por isso somos um povo sem memória. Isso é tão verdade que muitos políticos,
por exemplo, já condenados e até banidos do cenário da política, voltam
tempos depois e se aproveitam dessa falta de memória e se reelegem sem
nenhuma dificuldade, pois ninguém se lembra mais o que ele fez de errado!
E se isso é verdade com relação aos
erros, também é verdade com relação aos acertos. Ninguém se lembra mais do
que aconteceu de bom, da contribuição de quem esteve no momento que teve que
lutar pela capoeira, de sustentá-la e de fazê-la seguir seu curso na
História, reificando-a em cada nova página que a História do contexto em que
ela se insere, assim é que a Capoeira sempre acontece!
A Capoeira precisa sempre desses
guerreiros para reenviá-la para o futuro. A cada momento, uma nova geração
surge e retoma sua sustentação, carregando aquele bastão de sua conduta para
as próximas gerações e, esse momento e essa energia, já acontecem por longos
séculos. Alguém tem sempre que estar carregando esse importante bastão. Senão
a chama se apaga e a capoeira perde sua força!
Quando se afasta, a principio, o
capoeirista abdica de todos os seus direitos adquiridos durante seus dias de
dedicação à Capoeira!
Logicamente, essa ideia de
"abdicar" é uma visão extrema! É como se admitíssemos que somos
todos ingratos e isso não é verdade!
Essa possibilidade de acontecer
esse esquecimento na verdade existe!
Isso acontece porque as gerações
seguintes, depois de algumas outras, aquelas que conheciam o trabalho, o
jogo, a competência, a dedicação ou o que for. Simplesmente se tornam vultos
dispersos do passado. Somos assim. Esquecemos tudo! Não damos muito valor ao
que passou.
O caso de Brasília...!
Essa cidade foi inaugurada há muito
pouco tempo, relativamente, se comparada com centros como Salvador, Rio ou
São Paulo e ainda lutamos para conseguir fundar alguma tradição, ou nossas
pessoas de referência, que possam ser consideradas representantes da nossa
tradição.
Mas se olhar direito, a gente vai
ver que já temos algumas características bem definidas, bem reconhecidas. Uma
delas é o fato de nossa capoeira ser respeitada por todo canto. Temos razões
de sobra para verificar e acreditar que temos uma capoeira forte, saudável,
reconhecida como dentre as melhores praticadas no Brasil e no mundo afora.
Ai resta uma questão: de onde vem
isso??!! De que raízes vieram essa capoeira forte e respeitada que nosso Distrito
Federal respira?! Quem ou o que produziu essa linhagem de capoeira que se
tornou tão importante?! Logicamente isso não nasceu hoje, ou exclusivamente
com a geração que ora habita e ocupa nossas rodas, nossos eventos, no cenário
de Capoeira do Distrito Federal...!
Nascida na década de sessenta, a
cidade já alcançou sua maturidade e personalidade em termos de Capoeira! De
onde vem isso?! Certamente essa geração das primeiras décadas do ano 2000, já
é herdeira de alguma base de conhecimento, de uma força e uma energia técnica
e estética que alguém criou. Não temos como negar isso. Mas se não houver a
quem agradecer por isso, também não teremos de quem herdar. Não fizemos
sozinhos.
Outro dia estava em um evento no
interior do Pará e um camarada me perguntou:
- Mas se o Mestre Bimba foi tão
importante, por que não vemos os discípulos dele?! Onde está a linhagem
deixada por ele?!
Eu perguntei para ele:
- Você usa um golpe chamado Armada?! Usa
o toque do São Bento Grande de Regional?! Faz evento de batizado,
usa graduação, etc?! Então, meu irmão, você é um dos herdeiros da
capoeira deixada pelo Mestre Bimba. Mas você, como a maioria de nós, nem sabe
disso. Não percebe que você recebeu de graça todo o trabalho e sacrifício que
dezenas, talvez centenas de gerações anteriores a você fizeram na capoeira
para deixar para seu uso hoje em dia! Ou você pensa que inventou tudo isso?!
Meio sem graça a pessoa teve que
reconhecer que estava falando uma grande bobagem quando perguntou onde estava
a herança de Mestre Bimba.
No caso de Brasília, o estilo
arrojado, moderno, objetivo, eficiente, ritmado, firme e agressivo tem um
ancestral comum: o nome dele é Aldenor Carvalho Benjamin, que ficou conhecido
como Mestre Arraia. Que foi um dos pioneiros da capoeira do Distrito Federal e
ensinou aos primeiros capoeiristas residentes e nascidos aqui. Ele
simplesmente é o grande ancestral comum da maioria dos capoeiristas do Plano
Piloto, embora com a dispersão da linhagem em diversos novos nós, as pessoas
não mais saibam disso.
Decorrente dessa influência
arrojada e inovadora, independente e muito forte, a capoeira de Brasília se
tornou um dos movimentos mais influentes na capoeira modernizada em todo o
país e mundo afora. Mas, assim como o rapaz do Pará me disse, pouca gente
sabe disso!
Brasília criou os primeiros modelos
de trabalho com a capoeira fora da Bahia, em sala de aula; em grupos mistos
de homens e mulheres treinando juntos; incluindo a calistenia (treino de
ginástica localizada, como abdominais e outros exercícios da ginástica
estranhos à capoeira originalmente; também aqui se criou o primeiro sistema
de graduação fundamentado na ancestralidade afro-brasileira; uniformes,
estilos de jogo mais acrobático embora objetivo; essas, entre outras
inovações, como ter a primeira mulher a receber uma corda vermelha no Brasil
e, portanto, no mundo... enfim, as nossas inovações vão longe!
Mas, como dizia, poucos
capoeiristas sabem disso. A razão é a deficiência da nossa memória. Talvez o
ensino da ancestralidade devesse ser obrigação dos professores e mestres. Mas
não é! Nada é obrigatório e cada um escolhe, prioriza, o que quer ensinar!
Com isso, naturalmente, vão ficando
grandes buracos no conhecimento das novas gerações sobre seus ancestrais
comuns! Ninguém pode impedir ou mudar isso. Acho.
Como disse acima e como se diz na
capoeira: quem não é visto, não é lembrado!
Só mesmo com muita boa vontade
iremos preencher essa imensa e injusta lacuna que vai ficando nos legados que
chegou até nós.
O outro lado dessa moeda...
Certamente temos também os casos em
que as pessoas que ficaram afastadas voltam e reclamam seus direitos e nem
sempre elas tem esses direitos. Não tem como saber. Quem desconhece a
História, não vai saber quem é merecedor de reconhecimento e quem não é!
Por isso esse assunto ainda vai
circular muito entre nós. Principalmente agora que a Capoeira tem valor, um
valor muito maior do que já teve. Um valor que não dependeu de nenhuma ajuda
a não ser dela mesma, de seus valorosos guerreiros que lutam todos os dias de
suas vida, para que ela ocupe o pódio em que está! A capoeira venceu todos os
seus desafios para chegar até aqui, na sua plenitude e cidadania madura. No
estágio mais elevado da consciência de seus mestres e professores. A Capoeira
venceu porque alguém a sustentou nos seus braços e ombros enquanto caminhava
pelos difíceis momentos de ameaças, de perseguição, de discriminação, de
desvalorização...!
Mas quem são essas pessoas? Isso
não importa. Importante é a Capoeira, uma entidade viva que suplanta todos os
seus elos e segue vitoriosa para onde talvez nenhum de nós irá ver!
Só podemos nos preparar, os que
hoje seguram essa onda de carregarem a capoeira nos seus braços, pernas,
ombros e, principalmente, no coração, sabendo que, no futuro, terão que provar
que são dignos de serem reconhecimentos como legítimos velhos
mestres.
Para isso é melhor ter seus próprios discípulos e amigos capoeiristas, pois o coletivo, esse não está preparado, culturalmente, para saber o que houve há algumas décadas, já que a nossa memória não está treinada para guardar informações além de nossa própria aventura pessoal. Nossas vitórias, nossas derrotas. Ninguém estará interessado em contar.
Assim seguimos nosso caminhar rumo
ao destino que Deus e Oxalá nos permita cumprir!
Squisito
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do Blog de Mestre Squisito:
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Belo artigo e uma importante reflexão. Fazendo uso de uma analogia, podemos comparar a capoeira com outras atividades profissionais, como a advocacia, a medicina ou a docência. Quando alguém se afasta de suas atividades laborais e retorna após um determinado período, logicamente nestes três campos citados, ela precisará se atualizar para voltar à ativa, como dizemos. Mas em nenhuma delas os profissionais não deixam de ser médicos, advogados ou professores. Diante disso, não consigo compreender porque na capoeira há esse prática. Eu venho disso, parei 15 anos da prática da capoeira, mas não deixei de ser capoerista. Entretanto minha graduação regrediu, em todos os grupos que passei. O que me segurou foi o amor pela arte. Agora penso em quantos desistiram de voltar devido a esse descompasso temporal, a esta postura de determinados mestres que dizem... Tudo bem, te aceito, mas você vai ter que começar do zero! Imaginemos o que seria da Capoeira Angola se, ao retornar após 29 anos afastado, Vicente Ferreira Pastinha tivesse encontrado alguns mestres dos dias atuais, que pensam dessa forma? Prof. Paradinha. Grupo Zabelê Capoeira
ResponderExcluirBelo artigo e uma importante reflexão. Fazendo uso de uma analogia, podemos comparar a capoeira com outras atividades profissionais, como a advocacia, a medicina ou a docência. Quando alguém se afasta de suas atividades laborais e retorna após um determinado período, logicamente nestes três campos citados, ela precisará se atualizar para voltar à ativa, como dizemos. Mas em nenhuma delas os profissionais não deixam de ser médicos, advogados ou professores. Diante disso, não consigo compreender porque na capoeira há esse prática. Eu venho disso, parei 15 anos da prática da capoeira, mas não deixei de ser capoerista. Entretanto minha graduação regrediu, em todos os grupos que passei. O que me segurou foi o amor pela arte. Agora penso em quantos desistiram de voltar devido a esse descompasso temporal, a esta postura de determinados mestres que dizem... Tudo bem, te aceito, mas você vai ter que começar do zero! Imaginemos o que seria da Capoeira Angola se, ao retornar após 29 anos afastado, Vicente Ferreira Pastinha tivesse encontrado alguns mestres dos dias atuais, que pensam dessa forma? Prof. Paradinha. Grupo Zabelê Capoeira
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