07/03/2004 - Correio Braziliense
Os
dois amigos saíram de Brasília pra curtir as férias no Rio de Janeiro. Levaram
as motos Honda 500 e 550 naquele desejo de impressionar. Estavam em Copacabana
entrando em Vieira Souto em direção a Ipanema. Júlio apontou para uma entradinha
na calçada, onde poderiam cortar caminho. O parceiro não entendeu muito bem.
Nessa troca de informações, distraíram-se. E... É ridículo, mas é verdade.
Bateram uma moto na outra.
As
máquinas poderosas saíram voando. Arrebentados, dos dois sentaram-se na calçada
e passaram a descrever o drama. “Olha a lanterninha da direita”, dizia Júlio. “Se
foi”, respondia Hélio. “Olha o paralama...”, apontava um. “Se foi”, repetia o outro.
Até que começaram a contabilizar os machucados. Conclusão: “As férias acabaram!”.
A
cena urbana seria apenas mais uma entre muitas se os personagens da história
não fossem Júlio Adnet, professor de judô e dono da academia mais tradicional de
Brasília, e Hélio Tabosa, famoso professor de ginástica localizada
bra-si-lei-ra (faz questão do título) e capoeira, ídolo de várias gerações de
alunos, ex-alunos e professores de Educação Física do Distrito Federal.
Com
duas coca-colas e um violão ao fundo, os dois são grandes contadores de histórias,
tantos os detalhes que conseguem acrescentar aos episódios. “Tentamos novamente
viajar de moto para o Rio. Num semáforo, o Tabosa deu aquela arrancada de
motociclista. Só que um carro avançou o sinal e a moto bateu em cheio na
lateral dele. O Tabosa voou. Foi subindo, subindo e, lá em cima, ainda me ouvir
gritar: “Não é possível”, relata Júlio, que acabou desistindo da motocicleta.
Foi
ele quem descobriu Tabosa garotão, aos 18 anos, trabalhando num banco. Gostou
do jeitão do rapaz, competente, educado. Pensou que seria um excelente
funcionário, que manteria o ar familiar da empresa sempre equilibrado. Daí nasceu
uma relação de amizade e confiança sem igual.
Tabosa
resolvia tudo que é problema, enquanto Adnet se virava com as centenas de
alunos. Se o motorista da Kombi faltava, o patrão entregava as chaves para o
funcionário... “Se vira, chapinha!”. E Tabosa se virava. Nessa época, já havia
se graduado em judô.
Ao
mesmo tempo, começou a aprender capoeira com Mestre Arraia, discípulo do famoso
mestre Bimba, da Bahia. Encontrou a real vocação e decidiu dedicar-se a ela.
Foi às origens. Leu Pierre Verger e outros escritores que estudaram a cultura
negra. Buscou conhecer as religiões afro-brasileiras para entender melhor a
arte. Descobriu que é filho de Xangô, o orixá que representa a Justiça. Fez
duas tatuagens no braço direito: dois machados, símbolo de Xangô.
METAMORFOSE AMBULANTE “O Tabosa é um
personagem irrequieto. É um artista, o homem dos sete instrumentos. Ele pode
estar muito bem num lugar, mas de repente tem um impulso de mudar completamente
e, quando você vai ver, está numa calçada tocando violão. Tenho muitas histórias
fantásticas dele, muitas impublicáveis. Só não conto porque ele conhece umas
tantas histórias fantásticas minhas e pode querer contar também”, brinca Adnet,
hoje com 69 anos.
Nessa
verdadeira metamorfose ambulante, o guerreiro também aprendeu esgrima e arco e
flecha. E até contracenou com Antonio Fagundes e Roberto Bonfim no filme No coração dos deuses, de Geraldo
Moraes. Também participou de O sonho não
acabou, com Lauro Corona e Lucélia Santos. Mais: o espírito multimídia fez
com que Tabosa educasse o vozeirão. Cantor, compositor e violonista, já se
apresentou com a irmã cantora, Muriel Tabb.
Cinquentão, ele é um dos professores de ginástica e capoeira mais badalados em Brasília. Inquieto, também se formou em Direito e gosta de tocar MPB na noite
Tabosa
fez 57 anos em 5 de fevereiro. Continua com o corpo invejável, musculoso, bem
cuidado. Pedala 120 quilômetros por semana. Também nada. Do triátlon,
modalidade em que também foi campeão, só evita a corrida, que acha muito
agressiva. Filho de militar, nasceu no Rio, morou no Piauí, no Ceará em
Curitiba, Mas as raízes estão em Brasília, onde já viveu 38 anos.
Alguns
professores o questionam porque acreditam que a localizada deve apenas visar a
hipertrofia dos músculos. Se o aluno quiser melhorar a parte cardiorrespiratória,
pensam, deve fazer algum exercício aeróbico. Tabosa, no entanto, também se
preocupa com a parte cardiorrespiratória. “A estética não é massa, principalmente
para as mulheres.”
Depois
da escola de capoeira, abriu academia de localizada. Era o lugar da moda nos
anos 80/90. Foram 28 anos tocando o próprio negócio. Em 1998, quando muitos dos
alunos que formou abriram academias, como o Boca e a Dalmo Ribeiro, ele sentiu
a concorrência e mudou-se para Búzios. Achava que “tinha cumprido a missão” e
não queria mais saber de aula de ginástica. Pensava apenas em cuidar da pousada
que abriu com a sócia e mulher Tereza d’Arcanchy, com quem vive há 15 anos, e
cantava na noite, exercitando o dom para a música.
O
cantor, aliás, tem momentos imperdíveis no currículo. Fez sucesso em programas
de Silvio Santos e Flávio Cavalcanti. E como foi? "Uai. Foi bem. Fui para o
trono”, brinca ele, citando Chacrinha.
LUZ DE VELAS E DNA Tabosa voltou a
Brasília há quatro anos, quando o ex-aluno Itamar Barros, dono de academias de
ginástica na 111 e 216 Sul, o convidou para ministrar um workshop. Um sucesso.
Seu nome ainda era uma referência na cidade. Resolveu voltar. Não quer, porém,
abrir outra academia. Quer poder ir embora sem a necessidade de apagar a luz ou
saber quem foi que deixou a luz acesa.
Vendeu
a pousada e agora vive num condomínio do Lago Sul com Tereza. “Eu e o Tabosa
somos definitivos. Sabemos muito bem o que queremos. Ele não vive sem a
capoeira e a ginástica. Eu não vivo sem a minha arte. Até a neta que é só minha
ele assumiu. Até as filhas que são só dele eu assumi”, diz Tereza, que é
artista plástica e decoradora.
Toda
sexta-feira à noite o casal segue um ritual: os dois arrumam-se, jantam à luz de
velas, ou tomam uísque e batem papo. Querem cultivar um namoro sem fim. Talvez
seja esse o segredo da relação de cumplicidade e muito amor. Carla, a filha de
26 anos de Tereza, também é professora de Educação Física e fã número um do
paizão que adotou. "Ele é a minha inspiração. Tudo o que tenho de bom sobre a
imagem de um pai. Minha base profissional vem dele: a dignidade, a ética",
resume.
Tabosa
casou-se pela primeira vez aos 42 anos. Cinco meses depois, estava separado. Dessa
relação, nasceu a filha Laïs, 15 anos, que é ginasta do Flamengo. Há três anos,
ele apareceu numa reportagem do Correio. Por causa da foto, uma filha que ainda
não o conhecia telefonou pedindo para fazer o exame de DNA. Positivo. Um ano se
passou. Novo telefonema, novo exame. Mais uma filha. Laura, também de 21 anos,
mora em Uberaba e quis encontrar o pai. “Nada novelesco. Primeiro a gente
começa a criar um vínculo pela curiosidade. Depois o relacionamento vai se
firmando”, ensina ele.
Quando
todo mundo sai de casa, é Tabosa quem cuida da pequena Maria Eduarda, cinco
anos, filha de Carla. É um vovozão e tanto: anda de moto, dá martelo rodado,
planta bananeira, malha o bíceps, canta nos bares, sempre pode, aproveitar a
vida. Tabosa é um homem feliz.
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